" Não, tu não me ouves. Tu estás surdo e roído pela raiva. Mas talvez seja melhor assim. Talvez seja melhor que tu não me oiças, que não consigas ler os meus pensamentos. Tu não consegues ver que a distância que eu ponho entre nós é uma distância imposta a mim, antes de mais nada. Uma distância entre a minha vontade e a minha consciência. Tu não vês quando mudo as fraldas ao meu filho, quando o oiço chamar «Pai!» e não é a ti que ele chama. Tu não me ouves quando estou sentada em casa e aparentemente tudo está tranquilo, num regresso à normalidade que eu busquei e, contudo, chamo por ti até que o teu nome me magoe no peito: «Albert, Albert, Albert!». Não, tu só vês o que eu mostro e não consegues ver para além do que vês. Vês-me fugir ao teu olhar, ao teu encontro, à tua presença. Vês-me longe e alheia, como se tu não fosses para mim mais do que uma história infeliz e acabada. Mas não me vês olhar-te disfarçadamente, quando sei que não o esperas. Não vês o terror com que espio as outras mulheres aproximarem-se de ti. Não dormes comigo à noite quando eu me volto e torno a voltar na cama, buscando um sono que te apague de mim, que afaste as perguntas que então me devoram: «Onde estará ele agora? Estará sozinho em casa, sofrendo por minha causa? Estará acompanhado, dando a outra mulher o que eu já não tenho dele? Como fará ele amor com outra mulher? Como o pode?»
Como farás amor, meu amor? Farás como eu faço com o meu marido, de olhos fechados, de boca fechada, breve e silenciosamente, como se roubasse uma casa na escuridão da noite? Tentarás como eu, substituir a paixão e o excesso pela ternura e pelo consentimento? Com essas a quem chamas amigas, farás amor como um amigo, como eu e Chesterfield fazemos? E, por vezes, farás amor sozinho, como eu faço, pensando em ti, descendo com terror a mão que imagino tua pelo meu corpo, devagar, devagar, com todo o resto da vida à minha frente?
E quem dormirá ao teu lado de noite? Quem vigiará o teu sono agitado de criança, como o da última noite em que dormimos juntos e em que acordaste sobressaltado a olhar para mim e eu te acalmei e te fiz dormir de novo, encostado ao meu ombro, e nunca soube o que te assustara de repente, se a minha presença ao teu lado, se o medo que ela não fosse real.
E que sabes tu do meu sono? Que imaginas tu das minhas noites? Saberás tu que as mais felizes são aquelas em que chego à cama e adormeço, sem sequer me lembrar de ti nem querer, como na música da Simone: «eu não me lembro, nem esqueço - adormeço». Não, meu amor. Não quero ver o teu olhar triste e magoado que me acusa, sem defesa, que me condena, sem entender. Tu não entendes, mas eu preciso da tua força para sobreviver. Preciso de ver o teu sorriso espantado e terno, como se tudo fosse novo e claro, o teu riso inesperado e selvagem, que contagia todos à roda. Preciso de ver as tuas mãos seguras e firmes, arrancando à morte e à dor um corpo adormecido numa sala de operações onde todos respiram e estão suspensos dos teus gestos. Preciso de voltar a ver esse teu olhar cansado ao fim do dia, os ombros ligeiramente curvados, as palavras vagarosas, os olhos pisados pela luz do hospital e os gestos já ligeiramente desconexos e ausentes, de quem deu tudo e apenas espera recompor-se para dar outra vez. Quero-te vivo e igual a ti, como sempre te vi e te amei, para sentir-te ao meu lado para sempre, por maior que seja a distância física que criámos, a indiferença que tu imaginas que tenho e nunca tive nem terei. Sei que se me pudesses ouvir me chamarias egoísta e dirias que, como sempre, é só a minha vontade que conta. Estou sempre a falar contigo, mas tu não me ouves. Eu, porém, oiço-te sem que tu fales e quando falas, adivinho o contrário do que dizes. Vejo-te à deriva e perdido e não te posso ajudar, porque tenho de me ajudar a mim. Tu não entendes, eu sei. Vives um conflito entre a tua força vital - que eu não te roubei, nem poderia - e a tua vontade de te deixares afundar, de te fechares no escuro da tua casa e maldizeres-me, interminavelmente. Tu e não eu, se encarregará da tarefa de destruir tudo o que vivemos, de acordo com a lei do excesso que é a única que compreendes: tudo ou nada, verdade ou mentira, amor ou ódio. Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém. Assim vou vivendo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer. Sei das horas que continuo a atrasar-me no hospital para não chegar cedo a casa. Sei dos desvios que faço para não te encontrar e não deixar que destruas um pouco mais o que já se escaqueirou. Como uma estátua quebrada no chão, esperando no seu silêncio de mármore que os anos venham roer os pedaços do que outrora era uno e parecia inquebrável."
Excerto de Não te deixarei morrer David Crockett! de Miguel Sousa Tavares.
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